Experiências de quase morte: Relatos perturbadores de quem esteve quase morto e voltou
Um estudo conduzido por uma pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) revelou que pacientes que passam por experiências de quase morte (EQM) traumáticas — consideradas perturbadoras — podem ter consequências psicológicas que rompem com as certezas existenciais e alteram de forma significativa o fluxo da chamada “vida normal”.
O estudo explica que as EQMs são eventos psicológicos profundos que têm elementos transcendentais e místicos e Ocorrem, normalmente, com indivíduos que estão próximos da morte ou em situações de perigo físico ou emocional intenso.
As experiências acontecem durante a morte clínica de pacientes — quando há ausência de atividade no córtex cerebral, mas ainda com possibilidade de reanimação —, nunca na morte encefálica, que é uma condição irreversível.
O artigo indica que, na maioria dos casos, uma EQM leva o paciente a um contexto agradável, com relatos sentimentais de paz, amor e acolhimento; diferente do cenário de angústia, medo ou dor típicos de uma situação de doença grave, acidente ou violência que o tenha levado a esse estado. No entanto, alguns casos, não é isso que acontece — nas EQMs perturbadoras, a maioria dos fenômenos relatados são desagradáveis, causadores de dor, medo ou incertezas.
Principais características
O estudo explica que as EQMs em geral costumam apresentar algumas das seguintes características:
- Experiência fora do corpo: geralmente, pacientes relatam flutuar e ver o corpo de cima;
- Atravessar um túnel: há relatos de pessoas que veem túneis com ou sem luz no final;
- Consciência de estar morto: a noção pode surgir de forma intuitiva ou ser deduzida após observar o próprio corpo de cima, aparentemente sem vida;
- Paz e serenidade: mais comum em EQMs agradáveis, geralmente são relatados como mais intensos;
- Revisão da história de vida: a pessoa pode apenas assistir às cenas, revivê-las e até vivenciar do ponto de vista de outra pessoa relacionada com o acontecimento;
- Ver entes queridos já falecidos: além de pacientes “visitarem” familiares já mortos, há relatos de crianças que veem parentes falecidos há anos e depois os identificam em fotos antigas;
- Visitar outros planos: os relatos variam entre lugares de grande beleza (jardins ou “cidades de luz”) e locais desertos e pantanosos;
- Luz brilhante: o brilho relatado é intenso, mas sem ferir os olhos; alguns pacientes identificam como um ser que detém todo o conhecimento; pessoas religiosas podem identificar como Deus, um guia, orixá, etc, a depender da crença.
Pacientes intoxicados, alcoolizados, com overdose de drogas ou mesmo sob o efeito de medicamentos com efeitos sobre o nível de consciência podem apresentar EQM com aspectos bizarros e confusos, enquanto pacientes que têm EQM após parada cardiorrespiratória apresentam, caracteristicamente, experiência fora do corpo. Já aqueles que se depararam com o risco de morte repentino, como em um acidente, apresentam marcadamente prevalência de elementos cognitivos, como revisão da história de vida, distorção temporal ou aceleração do pensamento.
‘Acho que fui pro inferno, nada nunca mais foi igual’
O relato a seguir é de um engenheiro de 42 anos, católico, que se afogou. Após a experiência, ele desenvolveu transtorno de estresse pós-traumático e distúrbios do sono.
“Faz três anos que eu me afoguei e fui para um lugar horrível. Era escuro e sujo, pessoas gritando e chorando. Tinha um homem que ria enquanto levava muitas pessoas presas numa corrente. Ele me viu e diz que logo iria me levar.”
“Não gosto de contar isso porque ou acham que sou louco ou então acham que sou uma má pessoa por ter ido pra esse lugar. Eu acho que fui para o inferno. Nada nunca mais foi igual. Não tem uma noite que eu durmo bem e não tenho pesadelo com isso.”
“Sinto uma falta de ar, me sinto vigiado pelo mal. Quando penso nisso, tenho medo e muita vergonha. Não sou uma pessoa ruim. Espero que tudo se ajeite, espero ser bom e também ser mais próximo de Deus.”
Segundo Beatriz, esse é o tipo 3 de EQM perturbadora, que são aquelas em que a maioria dos fenômenos relatados são desagradáveis, causadores de dor, medo ou incertezas.
“Vivi uma experiência em um local pantanoso e trevoso”, descreveu um biomédico de 26 anos, que também teve uma EQM do terceiro tipo ocorrida após uma hemorragia no pulmão.
‘Sabemos que não estamos ali em matéria’
Veja, abaixo, o relato de um comerciante de 32 anos que sofreu um acidente de motocicleta e teve sequelas físicas.
“Surreal. Uma realidade totalmente diferente da de costume. É algo que nos envolve de uma tal maneira que sabemos que não estamos ali em matéria… Mas nossa consciência é atraída por este ambiente… Foi mega surreal.”
Esse é o segundo tipo de EQM perturbadora, que costuma aparecer como um tipo de experiência paradoxal, em que o paciente se defronta com o vazio e tem dificuldades para lidar com isso, pois coloca o ser humano em contato com a possibilidade de deixar de existir. O sujeito sente que espera passivamente por algo que não sabe ao certo o que é ou se realmente virá.
‘Despenquei em queda livre até bater com muita força’
Uma médica de 68 anos relatou a EQM que teve após um choque anafilático durante um exame com contraste.
“O primeiro evento foi uma revisão crítica da vida até aquele momento. Em seguida, entrei, muito amedrontada, numa espécie de buraco escuro e estreito, até começar a ver luz no fim do túnel. Saí num local de paz, luminoso, infinito, com uma música nunca tinha ouvido antes, cheiros suaves e vozes muito doces e acolhedoras.”
“Antes de ver qualquer pessoa, despenquei em queda livre e em posição de Trendelenburg até bater com muita força no interior do corpo, entrando pela região do chacra cardíaco. Demorei a conseguir mover o corpo. Os registros e os médicos dizem que fiquei imóvel por cerca de 10 minutos.”
Esse é o primeiro tipo de EQM perturbadora, que são semelhantes às agradáveis, mas são entendidas pelo paciente como algo assustador ou desconfortável.
‘Vi meu corpo caído no chão do hospital’
Também do tipo 1, o relato a seguir foi dado por uma funcionária pública federal de 56 anos, que passou por uma EQM após complicações decorrentes de um aborto.
“Tranquilidade, campo cheio de flores tipo margaridas, ao mesmo tempo em que vi meu corpo caído no chão do hospital.”
‘Não conseguia me mexer, era puxada pro túnel’
Abaixo, um breve relato de uma médica psiquiatra de 42 anos, que teve uma EQM tipo 1 ocasionada por traumatismo craniano:
“Tive a sensação de entrar em um túnel em alta velocidade com luzes coloridas e sensação de morte iminente, paralisia. Não conseguia me mexer. Eu era puxada para dentro do túnel de luzes.”
‘Senti a sala de cirurgia mais clara e um alívio muito grande’
A seguir, o relato de uma vendedora de 35 anos que passou por uma EQM tipo 1 provocada por uma hemorragia interna ocasionada por complicações de uma gravidez ectópica.
“Na mesa de cirurgia, enquanto ocorria a operação, eu estava com muito medo e ansiosa. Em um determinado ponto, senti como se a sala de cirurgia ficasse mais clara, como se as luzes ficassem mais fortes e brancas. Nesse momento, senti um alívio muito grande, uma tranquilidade e paz.”
“Algo muito instantâneo. Estava com muito medo de morrer e pensando no meu filho e familiares. Mas, nesse momento em que a sala ficou mais clara, não tive mais medo de morrer.”
A pesquisadora aponta que é um claro exemplo de EQM que se inicia desagradável (devido à presença de sentimentos angustiantes e da sensação de estar morrendo) e se desenrola de maneira mais agradável.
“Em geral a escuridão é descrita como tão densa que não se vê nada, e até mesmo os sons são absorvidos por ela, num silêncio profundo e pesado. Quando há sons, são de gritos, lamúrias, choros ou ameaças. Pode haver a presença de seres perturbados, chorosos ou ameaçadores. Em alguns casos, sons de correntes ou de tortura também são relatados”, afirma Beatriz.
“Nas experiências em que há outros seres no local, estes são descritos como seres sofredores ou perturbados, ou ainda, como seres ameaçadores e perturbadores, que de algum modo fazem o paciente sentir medo e insegurança. Durante a experiência, existe a sensação de que a qualquer momento a pessoa pode sofrer algum tipo de violência ou ser torturada.”
Consequências psicológicas e preconceitos
A pesquisa aponta que o conjunto de sensações provocadas pela EQM pode desencadear um “estressante e contínuo estado de hipervigilância, que pode persistir por anos”, quando a experiência é muito intensa.
Ela explica que a hipervigilância é caracterizada por um estado de alerta contínuo e cita que essa condição é acompanhada por um estado de ansiedade aumentada que pode causar exaustão, além de resposta aumentada aos estímulos e varredura contínua do ambiente à procura de ameaças.
“É frequente que a pessoa demore a se sentir à vontade em uma situação ou relacionamento interpessoal. Pacientes hipervigilantes tendem a preservar demais seu espaço pessoal, se sentindo seguros apenas em situações que podem controlar. Com isso, podem ter dificuldade para manter relações mais próximas e íntimas”, diz.
Os pacientes que passaram por EQMs perturbadoras, completa Beatriz, também podem ter transtornos secundários, como distúrbios do sono, transtorno de estresse pós-traumático e depressão.
Uma das consequências negativas para o mundo acadêmico, de acordo com a pesquisadora, é que esses reflexos levam as pessoas a não relatarem suas experiências.
“Faz com que esse tipo de experiência seja subnotificada. Além de dificultar estudos que poderiam apontar diretrizes clínicas para aliviar os efeitos nefastos que esse tipo de EQM traz, esses pacientes ficam desamparados, sem o tratamento necessário, enfrentando sozinhos sentimentos desagradáveis intensos e eventuais transtornos.”
O estudo foi feito pela Pós-doutoranda do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP, Beatriz Ferrara Carunchio, que chegou a essa conclusão ao estudar relatos coletados por ela mesma durante sua pesquisa de doutorado, realizada na PUC-SP. O artigo foi publicado na Revista Rever, da PUC, e a reportagem é do g1.